Igreja, realidade apenas espiritual?
Padre David Francisquini
Pergunta — Ouvi no portal da VaticanNews uma palestra do sacerdote gaúcho Pe. Gerson Schmidt sobre a eclesiologia da constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II. Ele dizia que esse documento é fruto do movimento eclesiológico iniciado no século XIX na Escola teológica de Tübingen, na Alemanha, sob a influência do teólogo Johann Adam Möhler. Essa escola teria insistido que a Igreja é um organismo acima de tudo espiritual: o Corpo de Cristo que perpetua a salvação na história concreta dos homens. Mas acrescentou que o Concílio Vaticano I teria negligenciado essa visão espiritual da Igreja, vendo na expressão Corpo Místico de Cristo somente uma metáfora, e insistindo apenas no caráter corporativo e, sobretudo, hierárquico da Igreja. Segundo ele, teria sido o Vaticano II que recuperou essa concepção mais espiritual da Igreja. Isso é verdade?
Resposta — A palestra ouvida pelo nosso leitor contém algumas informações verdadeiras e outras inexatas. É verdade que a Lumen Gentium se inspirou na corrente eclesiológica originada na escola de Tübingen. Mas é falso que a eclesiologia tradicional tenha exagerado a dimensão visível e hierárquica da Igreja, em detrimento de sua dimensão espiritual.
Ao longo da História, o Magistério insistiu em cada época nas verdades de fé que estavam sendo negadas naquele momento específico. Mas sempre soube manter o perfeito equilíbrio do conjunto dos ensinamentos deixados por Nosso Senhor à Igreja em depósito. Por exemplo, no século II, ao condenar o docetismo — que negava a realidade humana de Jesus Cristo —, a Igreja insistiu muito que Ele era verdadeiro homem, mas nunca deixou de ensinar sua divindade. Pelo contrário, no século IV, ao condenar o arianismo — que negava a divindade de Nosso Senhor —, a Igreja insistiu muito que o Verbo era consubstancial ao Pai, mas nunca deixou de ensinar que Ele “se fez carne e habitou entre nós”, como proclama o início do Evangelho de São João.
No século XVI, Lutero [acima] e seus sequazes afirmaram que a Igreja era apenas o conglomerado espiritual dos fiéis unidos a Cristo pela crença de que “só Deus salva”, negando que Nosso Senhor fundou uma Igreja visível e a dotou de uma Hierarquia de pastores para santificar, ensinar e governar os fiéis. Nessa emergência, o Concílio de Trento fulminou esse aspecto da heresia protestante, declarando solenemente que a Igreja “é como um exército bem formado (Cânt 6, 3)”, no qual “os bispos que são os sucessores dos Apóstolos, pertencem à ordem hierárquica, e que eles foram — como diz o Apóstolo São Paulo — estabelecidos pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus (At 20, 28)”.
Como os protestantes odiavam particularmente o Papado, o Catecismo de São Pio V, publicado por iniciativa do Concílio de Trento, timbrou em declarar que “a Igreja visível precisa de um chefe visível”, acrescentando que “por isso é que Nosso Salvador estabeleceu Pedro como Chefe e Pastor de todo o rebanho dos fiéis” e quis “que os sucessores de Pedro tivessem, incontestavelmente, os mesmos poderes para reger e governar toda a Igreja” (I Parte: Do Símbolo dos Apóstolos, 9° Artigo § 12).
A Igreja é o Corpo Místico de Cristo
Nesse contexto de controvérsia antiprotestante, São Roberto Belarmino (1542-1621) deu a seguinte definição da Esposa de Cristo, retomada quase por todos os manuais de Teologia posteriores: “A Igreja é uma sociedade composta por homens unidos entre si pela profissão de uma única e idêntica fé cristã e pela comunhão nos mesmos sacramentos sob a jurisdição de pastores legítimos, sobretudo do Romano Pontífice”. Isso não significava, porém, que o grande Doutor jesuíta desvalorizasse a dimensão espiritual e sobrenatural da Santa Igreja. Pelo contrário, São Roberto ensinava, com muita subtileza, que a denominação Corpo de Cristo não quer dizer somente que Ele é a Cabeça do seu Corpo Místico, mas também que Ele sustenta a Igreja, de tal maneira que a Igreja é como uma segunda personificação de Cristo (cf. De Rom. Pont., I, 9; De Concil., II,19).
O mesmo equilíbrio se encontra nos padres do Concílio Vaticano I. No plano original — elaborado a pedido de Pio IX pelo líder da corrente ultramontana, o futuro Cardeal Louis-Edouard Pie —, devia-se discutir primeiro um esquema sobre a Igreja e depois dois esquemas, respectivamente sobre a infalibilidade e a jurisdição universal do Romano Pontífice. Mas a perspectiva da guerra franco-prussiana levou a inverter a ordem dos debates, pelo receio de que devessem interromper o Concílio, de maneira que foram proclamados apenas esses dois dogmas sobre as prerrogativas do Papa, não tendo sido possível votar o esquema de constituição dogmática De Ecclesia Christi.
Ora, o primeiro capítulo da primeira redação desse esquema intitulava-se “A Igreja é o Corpo Místico de Cristo”. Ele ensinava que Nosso Senhor instituiu o Batismo para que os filhos da Igreja “se tornem membros uns dos outros depois de limpos de todas as impurezas, e unidos uns e outros com sua divina Cabeça pela fé, esperança e caridade, sejam todos vivificados por seu único Espírito e recebam abundantes dons de graças celestiais e carismas”.
A Igreja é uma sociedade espiritual e sobrenatural
“A Igreja é uma sociedade composta por homens unidos entre si pela profissão de uma única e idêntica fé cristã e pela comunhão nos mesmos sacramentos sob a jurisdição de pastores legítimos, sobretudo do Romano Pontífice” (São Roberto Belarmino).
Por sua vez, o capítulo III acentuava no seu enunciado que “a Igreja é uma sociedade verdadeira, perfeita, espiritual e sobrenatural”, e insistia novamente que Ela provém “da misericórdia de Deus Pai”; que foi fundada “pelo ministério e obra do seu Verbo Encarnado”, e cimentada “no Espírito Santo, que, dado primeiro em abundância aos Apóstolos, é também derramado abundante e constantemente sobre os filhos adotivos”. Por isso, o capítulo concluía ensinando que “a Igreja é uma sociedade espiritual e sobrenatural no sentido pleno da palavra”.
O perfeito equilíbrio entre os aspectos visíveis e invisíveis da Igreja ficava ainda confirmado por um parágrafo posterior, que ensinava: “Mas não se deve acreditar que apenas laços internos e invisíveis unem os membros da Igreja, e que o resultado seja uma sociedade oculta e completamente invisível. Pois a eterna sabedoria e poder de Deus quiseram que aos laços espirituais e invisíveis que unem os fiéis com a Cabeça suprema e invisível na Igreja, com o concurso do Espírito Santo, correspondessem também os laços externos e visíveis, para que esta comunidade espiritual e sobrenatural aparecesse externamente e se tornasse reconhecível.” Portanto, é inteiramente improcedente afirmar que o Concílio Vaticano I teria negligenciado a dimensão espiritual da Igreja, vendo na expressão Corpo Místico de Cristo apenas uma metáfora.
“Modernismo católico” condenado por São Pio X
O problema para os católicos deformados pelo “ecumenismo do coração” — e já os havia no século XIX — é que o magistério tradicional acrescentava que “esta comunidade visível e reconhecível” constitui “um corpo indiviso e indivisível, que é precisamente o Corpo Místico de Cristo”, e que, portanto, as “outras comunidades, separadas da unidade de fé ou da comunidade deste Corpo, não podem ser chamadas parte ou membros dela; nem ela abarca nem inclui em si as várias seitas religiosas ditas cristãs” (Esquema de Constituição De Ecclesia do Vaticano I).
Foi para tentar obviar essa consequência que a Escola de Tübingen e sua estrela, o teólogo Johann Adam Möhler, começaram a sublinhar cada vez mais a dimensão sobrenatural da Igreja, deixando gradualmente na sombra seu caráter de sociedade visível, perfeita e hierárquica, sob o pretexto de combater o suposto “juridicismo” e “intelectualismo abstrato” da teologia pós tridentina. Tratava-se, segundo eles, de recuperar a vivência do “mistério da Igreja” como era vivido nas primeiras comunidades cristãs, nas quais não havia estruturas definidas. Para Möhler e seus colegas de Tübingen, não é tanto o Papado que assegura a unidade da Igreja, mas a realidade sobrenatural da união dos cristãos e sua ligação interior com Cristo. Eles acrescentam que essa unidade espiritual e viva dos fiéis no Corpo Místico, mais do que a natureza hierárquica da Igreja, é o que valoriza a sua dimensão comunitária, favorecendo uma evolução orgânica de sua doutrina: “O teólogo católico sabe que as fórmulas, depois de caducas, ficam sem influência sobre as almas. Adaptando a terminologia dogmática às exigências do presente, ele não muda o dogma, mas o reanima e lhe devolve toda a sua força” — diz Möhler.
O estudioso protestante francês Prof. Edmond Vermeil mostrou na conclusão de sua documentada tese doutoral (Johann Möhler e a Escola Católica de Tübingen (1815-1840) – Estudo sobre a teologia romântica em Wurtenberg e as origens germânicas do Modernismo) que as ideias básicas de Möhler coincidem com as professadas depois pelos modernistas, as quais foram condenadas por São Pio X na encíclica Pascendi (notadamente com as doutrinas de Tyrrel e de Loisy). Essa avaliação é partilhada pelo conceituado Dictionnaire de théologie catholique, o qual conclui o artigo sobre o teólogo de Tübingen reconhecendo que “Möhler foi um precursor inconsciente do modernismo católico”.
Igreja governada pelo Romano Pontífice e pelos bispos
Leão XIII afirma, na encíclica Satis cognitum: “Pelo próprio fato de ser um corpo, a Igreja se torna visível aos olhos”
Apesar disso, após a morte de São Pio X, a Escola de Tübingen foi reabilitada pelos propulsores da chamada nouvelle théologie (nova teologia), notadamente pelo dominicano Yves Congar e o jesuíta Pierre Chaillet, os quais, por ocasião do centenário da morte de Johann Möhler, publicaram na primavera de 1939 uma Homenagem a Möhler, com nove contribuições em alemão e seis em francês. Mais tarde, os dois teólogos irão servir-se de seus ancestrais de Tübingen como ponto de apoio contra a eclesiologia societária e hierárquica, dominante no ensino católico desde São Roberto Belarmino, em favor de uma visão da Igreja menos desencarnada e institucional, “mais mística, mais orgânica e mais dinâmica”, no dizer do Padre Chaillet, ou seja, como um organismo vivo inseparável da história na qual Ela está inserida. Por isso, acrescenta o Padre Congar, a Igreja é “mais profundamente Corpo Místico que sociedade hierárquica”.
Os dois expoentes da nova teologia mostravam-se apaixonadamente interessados nos escritos de Möhler também pelo fato deste último “ter procurado dar uma solução ao problema da unidade [dos cristãos], mantendo no seu liame orgânico o Cristo e a Igreja e justificando a mediação da Igreja pela Mediação do Verbo Encarnado”. Vê-se nisso o primeiro despontar do que viria a ser a doutrina do Vaticano II, segundo a qual a Igreja de Cristo “subsiste” na Igreja Católica, mas abarca uma realidade mais ampla, posto que as “comunidades separadas” teriam uma união imperfeita com a Igreja de Cristo e o Espírito Santo servir-se-ia também delas como meios de salvação.
As “eclesiologias do Corpo Místico” elaboradas por Congar, Chaillet e outros entre as duas Guerras Mundiais, tentavam explicar as relações entre a realidade espiritual e invisível e a realidade institucional da Igreja fazendo uma analogia com a união hipostática da natureza divina com a natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo, misturando-a com elementos psicológicos ou biológico-orgânicos, dando lugar a uma visão misticista do “mistério da Igreja”, negando ou apagando a relevância teológica dos seus vínculos sociais e visíveis. A encíclica Mystici corporis Christi de Pio XII (1943) condenou essa deriva, associando de maneira muito sólida o Corpo Místico à instituição visível da Igreja Católica, governada pelo Romano Pontífice e pelos bispos.
Pio XII afirma que escreveu a encíclica porque “entre os fiéis vão serpejando opiniões ou inexatas ou de todo falsas, que podem desviar os espíritos da reta senda da verdade”. Começa explicando que Nosso Senhor Jesus Cristo podia ter comunicado diretamente aos homens as graças abundantes obtidas pelo sacrifício da Cruz, mas preferiu fazê-lo “por meio da Igreja visível, formada por homens, a fim de que por meio dela todos fossem, em certo modo, seus colaboradores na distribuição dos divinos frutos da Redenção” (n°12). Ora, acrescenta ele, “para definir e descrever esta verdadeira Igreja de Cristo — que é a santa, católica, apostólica Igreja romana — nada há mais nobre, nem mais excelente, nem mais divino do que o conceito expresso na denominação ‘corpo místico de Jesus Cristo’” (n°13).
Caráter hierárquico da Igreja, abalado no Vaticano II
O pranteado pontífice apressa-se em colocar o dedo na deriva ecumenista das novas eclesiologias: “Ora, se a Igreja é um corpo, deve necessariamente ser um todo sem divisão, segundo aquela sentença de Paulo: ‘Nós, muitos, somos um só corpo em Cristo’ (Rm 12, 5). E não só deve ser um todo sem divisão, mas também algo concreto e visível, como afirma nosso predecessor de feliz memória Leão XIII, na encíclica Satis cognitum: ‘Pelo fato mesmo que é um corpo, a Igreja torna-se visível aos olhos’. Estão pois longe da verdade revelada os que imaginam a Igreja como algo que não se pode tocar nem ver, mas é apenas, como dizem, uma coisa ‘pneumática’ que une entre si com vínculo invisível muitas comunidades cristãs, embora separadas na fé” (n°14). Por isso, “como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o banho da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do organismo do corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas” (n°21).
De outro lado, a encíclica sublinha que “não basta qualquer aglomerado de membros para formar um corpo, mas é preciso que seja dotado de órgãos ou membros com funções distintas e que estejam unidos em determinada ordem”, pelo que é “fora de dúvida que todos os que neste corpo estão investidos de poder sagrado, são membros primários e principais, já que são eles que, por instituição do próprio Redentor, perpetuam os ofícios de Cristo doutor, rei e sacerdote” (n°16 e 17).
Infelizmente, todo esse delicado equilíbrio da eclesiologia tradicional foi substituído no Concílio Vaticano II pelo desequilíbrio das teorias “orgânicas” esboçadas por Möhler e radicalizadas por Congar e Chaillet, que puseram em surdina a caráter hierárquico da Igreja, acentuando que no “Povo de Deus” (expressão utilizada 41 vezes ao longo da Lumen Gentium) todos os fiéis somos iguais pelo Batismo, e deixando de afirmar peremptoriamente que a Igreja de Cristo é a Igreja Católica, com exclusão das demais denominações cristãs, que estão separadas do seu Corpo Místico pelo cisma ou pela heresia.